Da tradição tecnicista vem a "necessidade vital" do
consumo, e as poderosas técnicas da publicidade têm no homem atual presa
fácil pelo vazio existencial proporcionado na era pós-moderna
Uma re flexão filosófica sobre as influências comportamentais das
práticas comunicativas na subjetividade do indivíduo regido pelos signos
do ideário capitalista não pode se furtar em analisar criteriosamente
os mecanismos publicitários da persuasão sobre as qualidades atribuídas
aos produtos disponíveis no sistema de mercado no qual estamos
inseridos. O grande motor da propaganda consiste na sua habilidade em
estimular o indivíduo a consumir um dado produto, destacando-se as
características que se julga como potenciais fontes de atração da
percepção do indivíduo. As técnicas publicitárias geralmente associam a
imagem do produto divulgado com elementos que não correspondem
imediatamente ao objeto destacado, pois esse procedimento gera, na
mentalidade do consumidor, a ideia de que, ao adquirir um produto
específico, as qualidades supostamente contidas nesse produto serão
assimiladas. O especialista em Comunicação Social, Gino Giacomini Filho,
destaca que “a publicidade nasceu com o claro propósito de fomentar a
transação econômica, principalmente diminuindo a resistência do
consumidor”.
O consumidor caracterizado por seguir os normativos mandamentos
publicitários, propagadores das imagens espetaculares de sucesso
pessoal e pro- ssional, se encontra na obrigação de ser feliz, mas
esse estado de beatitude não se concretiza da maneira esperada na vida
cotidiana. Este é seu maior malogro, havendo assim uma descontinuidade
entre aquisição de bens materiais e felicidade genuína. Conforme
complementa Adriana Santos, especialista em Imagens e Culturas
Midiáticas: “Cada vez mais, os meios de comunicação, não apenas
sinônimos de troca de informação como também de publicidade e propaganda
– acenam com maiores quantidades de objetos de desejo para os
consumidores, fazendo com que, um dia, o paraíso e o bem-estar
prometidos por tais produtos possam ser nalmente encontrados”.
O prazer existencial prometido pelo consumo de bens materiais não se
encontra de modo algum imediatamente associado a esses, ainda que haja
uma maciça campanha publicitária que promova o poder mágico desses bens
como acessórios por excelência para que o consumidor conquiste o patamar
de satisfação material esperado. Consumir é sempre uma atividade
supressora do estresse; logo, por qual motivo não se aproveitar da
sensação geral de instabilidade psíquica reinante nos agitados centros
urbanos para se promover a comercialização dos diversos tipos de objetos
disponíveis, revestindo-os com os efeitos espetaculares da propaganda?
Vejamos o parecer crítico de Schröder e Vestergaard: “Mostrando gente
incrivelmente feliz e fascinante, cujo êxito em termos de carreira ou de
sexo – ou ambos – é óbvio, a propaganda constrói um universo imaginário
em que o leitor consegue materializar os desejos insatisfeitos da sua
vida diária”.
Os critérios “morais” da sociedade consumista, herdeira do
tecnicismo industrial, consistem na obrigação incondicional do indivíduo
se apresentar publicamente como alguém plenamente capacitado a
consumir, mesmo sem que isso resulte na realização de uma necessidade
vital básica; com efeito, a lógica consumista faz da disposição de
consumir coisas uma necessidade vital irrevogável. A doutora em crítica
literária, Lucia Santaella, destaca que, “fascinado diante da miríade de
estímulos, diante do espetáculo volátil das luzes, das imagens, dos
cenários e das coisas, nas grandes cidades, o olhar moderno aprendeu a
desejar o corpo enfeitiçado das mercadorias que, sacralizadas pela
publicidade, cam expostas à cobiça por trás dos vidros reluzentes das
vitrines. O discurso da publicidade consumista se utiliza da
insatisfação existencial do indivíduo para melhor dominá-lo, insu
ando-lhe tendências heterônomas em relação ao seu apreço pelos bens
materiais. Conforme destacam os sociólogos Philippe Breton e Serge
Proulx, “a publicidade, se inserindo na problemática de marketing das
empresas, tornou-se um mecanismo essencial para a organização da
produção da demanda e das necessidades a preencher pelo consumo”.
A publicidade fabrica consenso para atender aos interesses do poder
econômico, prosperando assim por meio das carências existenciais de cada
indivíduo, que consomem sofregamente em nome de uma postulada
“satisfação interior”. O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, argumenta
com muita precisão que “a liberdade do consumidor signi ca uma
orientação da vida para as mercadorias aprovadas pelo mercado, assim
impedindo uma liberdade crucial: a de se libertar do mercado, liberdade
que signi ca tudo menos a escolha entre produtos comerciais
padronizados.”
orna-se tecnicamente impossível pensarmos em “liberdade de escolha”
ou “liberdade individual” quando existe um mecanismo social, a
publicidade, que cria, em nome de conveniências econômicas, demandas
desiderativas que exigem da parte do consumidor a sua satisfação
imediata, para que a paz psíquica se estabeleça em sua consciência. O
comunicólogo francês, Abraham Moles, a rma que “o papel da agência de
publicidade é, de um lado, manter as necessidades, e de outro,
transformar os “desejos” em “necessidades”, na medida em que o indivíduo
tenha uma margem de escolha imposta”.
Os publicitários conhecem um campo de possibilidades de reações
dos indivíduos diante de um produto e com a propaganda que é feita em
torno dele. Detendo uma ampla percepção psicológica da afetividade do
consumidor, o pro ssional da publicidade consegue elaborar um tipo de
discurso que se encaixa perfeitamente nas aspirações pessoais da massa
consumidora, levando-a ao pronto consumo da coisa divulgada na
propaganda social, que é usualmente contextualizada em situações de
prazer, de alegria, contando com a presença de pessoas belas e
saudáveis.
Para o sociólogo e filósofo francês, Jean Baudrillard, “o
narcisismo do indivíduo na sociedade de consumo não é fruição da
singularidade, é refração de traços coletivos” . Tal
colocação desmisti ca o discurso ideológico da publicidade que apregoa a
capacidade mágica de singularização do ser humano por meio da aquisição
dos produtos revestidos de uma aura soteriológica, capaz de libertar o
consumidor de sua mediocridade existencial. Marilena Chaui destrincha
esse paradoxo ideológico da moral publicitária, argumentando que “a
propaganda tenta garantir ao consumidor que ele será, ao mesmo tempo,
igual a todo mundo e não um deslocado (pois consumirá o que os outros
consomem) e será diferente de todo mundo (pois o produto lhe dará uma
individualidade especial)”.
É impossível negarmos a inexistência de qualquer responsabilidade
social dos agentes publicitários, especuladores dos desejos coletivos,
em forjar novas demandas consumistas, como forma de pretensamente
outorgar aos consumidores tanto uma sensação de pertencimento social
quanto de
status quo. Para o sociólogo, Don Slater, “as pessoas
compram a versão mais cara de um produto não porque tem mais valor de
uso do que a versão mais barata (embora possam usar essa
racionalização), mas porque signi fica
status e exclusividade; e, claro está, esse status provavelmente será indicado pela etiqueta de um
designer ou de uma loja de departamentos”.
A sociedade de consumo faz com que os indivíduos,
psicologicamente massi cados pela ideologia mercantilista apregoada
pela publicidade comercial, atuem de maneira heterônoma no tocante ao
ato de aquisição dos gêneros ofertados, o que resulta no curioso caso de
que muitas vezes os indivíduos adquirem os produtos à disposição do
mercado consumidor em decorrência direta dos estímulos externos
transmitidos pelos mecanismos midiáticos. O desenvolvimento das técnicas
do neuromarketing, dispositivo comunicacional caracterizado pelo uso de
mecanismos subliminares na divulgação da propaganda é um dos fatores
que geram a criação arti cial de demandas consumistas nos indivíduos
seduzidos pelas imagens prometedoras do gozo existencial mediante o
usufruto do produto divulgado. Uma pergunta se torna imprescindível:
comprovando-se a propaganda subliminar, é possível pensarmos na ideia de
liberdade de escolha do consumidor? O consultor corporativo
dinamarquês, Martin Lindstrom defende a ideia de que em breve um número
cada vez maior de empresas vai se esforçar para manipular medos e
inseguranças a respeito de nós mesmos para nos fazer pensar que não
somos su cientemente bons, que se não comprarmos um determinado
produto, estaremos de alguma forma perdendo algo.
A in finidade de impulsos inconscientes em busca de satisfação, manipulados com
maestria pelo sistema publicitário, pode ser considerada como a
motivação ao ato de comprar através desses estímulos da propaganda,
mantendo-se, todavia, uma distância muito estreita entre desejo e gozo.
Diante da in nidade de produtos disponíveis no mercado, o indivíduo
economicamente viável não é capaz de ater sua atenção para apenas um
objeto, excitando-se assim com a miríade de marcas que utuam perante
sua consciência submetida aos efeitos sedutores dos gêneros de consumo. A
mente do indivíduo, imersa na realidade espetacular das imagens
impactantes, somente consegue deter sua preciosa atenção para os
produtos acompanhados de promessas de felicidade instantânea e
envernizados pelo palavreado demagógico da propaganda.
Na dimensão comercial da sociedade capitalista, quem promove a
exaltação mágica dos produtos é a publicidade, que reveste com
propriedades especiais os objetos destinados para compra, em uma relação
nitidamente fetichista, conforme a acepção marxista: uma relação social
de nida, estabelecida entre os homens, assumindo a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas. O produto
alardeado pela publicidade dos meios de comunicação de massa deixa de
ser algo puramente material, utilitário, e se torna algo dotado
simbolicamente de vida própria, granjeando a simpatia e adesão do
consumidor, que deposita em tal produto a oportunidade de obter a
sonhada felicidade.
O indivíduo que recebe essas informações é levado a acreditar
que, se ele consumir esse produto, ele também será feliz e bonito, tal
como veiculado pelo garoto- -propaganda. Para o lósofo francês Gilles
Lipovetsky, “a sedução tomou o lugar do dever, o bem-estar tornou-se
Deus, e a publicidade é seu profeta. O reino do consumo e da publicidade
exprime muito bem o sentido coeso da cultura pós-moralista. Assim, as
relações entre os homens cam sendo sistematicamente menos simbolizadas
e apreciadas do que as relações entre os homens e as coisas”.
A relação sedutora produzida pelo sistema das mercadorias apresentadas
ostensivamente na experiência cotidiana, operada pelo ardil
publicitário, pretende justamente exigir de cada indivíduo o consumo dos
produtos maravilhosamente expostos nos grandes altares comerciais, as
prateleiras, as vitrines, os mostruários, fazendo com que o consumidor
se relacione com tais produtos a partir de uma experiência devocional
secularizada. Tal situação, que se encontra na base da grande maioria
das atividades publicitárias, é merecedora de uma série de re exões
sobre as implicações éticas da propaganda social e da sua capacidade de
in uenciar na tomada de decisão dos gostos individuais. A nal, o
consumo de um dado produto pode até proporcionar ao indivíduo um estado
de bem-estar, mas isso não fará desse consumidor a pessoa extraordinária
que a campanha publicitária apregoa de forma tão enfática. Para a
psicanalista Maria Rita Kehl, “a aliança entre a expansão do capital e a
liberação sexual fez do interesse das massas consumidoras pelo sexo um
ingrediente e ciente de publicidade. Tudo o que se vende tem apelo
sexual: um carro, um liquidi cador, um comprimido contra dor de cabeça,
um provedor de internet, um tempero industrializado. A imagem
publicitária evoca o gozo que se consuma na própria imagem, ao mesmo
tempo em que promete fazer do consumidor um ser pleno e realizado. Tudo
evoca o sexo ao mesmo tempo em que afasta o sexual, na medida em que a
mercadoria se oferece como presença segura, positivada no real, do
objeto de desejo”.
Certamente é muito difícil suprimirem-se essas falácias subjacentes ao
discurso publicitário, pois que este depende, sobretudo, desse sistema
de ilusões. Com efeito, se fossem extirpadas as falsas promessas dos
produtos defendidos pela propaganda, esta praticamente se extinguiria.
Para o lósofo e teólogo espanhol, Niceto Blázquez, “a publicidade é
praticada como uma retórica contrária à liberdade interior dos
potenciais compradores mediante o recurso franco às técnicas persuasivas
mais e cazes. Como serviço de informação comercial é muito conveniente
e útil. Mas até que ponto é eticamente lícito condicionar a liberdade
alheia como meio para lucrar, embora oferecendo produtos e serviços
necessários?”.
Para aqueles que não conseguem participar desse culto materialista
regulado pelas trocas econômicas, resta o desprezo e a exclusão social
proveniente da impossibilidade de participação na valoração identitária
de um dado grupo. A sociedade de consumo, caracterizada por seu
sectarismo excludente, não aceita a presença dos indivíduos imputados
como economicamente inviáveis.
PERSUASÃO DO BEM?
Na estrutura capitalista em vigor seria tecnicamente impossível
pensarmos na delimitação da atividade publicitária apenas ao ato de
divulgação pura objetiva dos produtos, sem quaisquer outros oreios
discursivos e imagéticos visando o encantamento do consumidor. A
publicidade e sua extensão propagandística, para se sustentarem
comercialmente, necessitam da existência desse suporte retórico e
espetacular com o qual os produtos são adornados. Por conseguinte,
trata-se de uma falácia ideológica o discurso de defesa da publicidade
que apregoa a ideologia segundo a qual a propaganda não “obriga” o
consumidor a adquirir o produto alardeado. O próprio fato de a
publicidade revestir os produtos propagandeados com qualidades
inexistentes, visando conquistar a adesão do consumidor, retrata o seu
falseamento dessa relação. Os objetos possuem apenas qualidades
funcionais, técnicas, nada mais do que isso: qualquer outro acréscimo é
apenas projeção psicológica do próprio consumidor, que deposita extrema
con ança na capacidade “soteriológica” do produto em lhe proporcionar
um satisfatório estado de gozo a partir da sedução publicitária original
que promete tais benesses ao usuário. Portanto, a manutenção da vida
vazia do indivíduo alienado de si na sociedade capitalista é
potencializada pelo sistema publicitário, braço comercialista dos meios
de comunicação. Obviamente não há uma coerção concreta exigindo o ato de
consumo, mas existe a coerção simbólica que requer do indivíduo sua
participação econômica nessa lógica comercial, para que ele possa assim
ser aceito nos padrões sociais de comportamento.
Em linhas gerais, a proposta desse texto não consistiu em
demonizar a atividade publicitária, mas proporcionar uma análise crítica
sobre os seus efeitos existenciais e comportamentais nos indivíduos,
promovendo assim um razoável esclarecimento sobre as suas técnicas
comunicativas de persuasão.
Prezadas
e Prezados, se chegaram aqui lendo todo o texto, parabéns. Às vezes é
necessária uma parada para pensarmos um pouco. E o texto está repleto de
polêmicas. Reflita sobre aquele ponto que mais lhe chamou mais a atenção.