Uma faixa de renda capaz de definir uma “classe média global” mostra
que o Brasil e o mundo têm muito mais pobres do que afirmam os governos
Por Rafael Ciscati e Marcos Coronato - Revista Época - Ed. 791 - 22/07/2013
“A classe mais importante em qualquer comunidade é a classe média, os
homens de vida módica, que vivem à base de milhares de dólares por ano
ou perto disso”, escreveu Walt Whitman na metade do século XIX. Whitman
era jornalista e também poeta, e por esse ofício entrou para a história.
Naquele ano de 1858, em que percebeu a relevância da classe média, o
jornalista Whitman deu um furo. Percebia que o destino do país estava
atrelado definitivamente àquela grande parcela da população com renda
alta o bastante para se educar, criticar, influenciar e recusar trocar
seu voto por benesses populistas. Ao mesmo tempo, essa parcela da
população, bem diferente dos ricos,, dependia do próprio trabalho e nãó
podia ignorar crises e trapalhadas econômicas de governos incompetentes.
Whitman entendeu o conceito, mas não chegou nem perto de definir,
precisamente, que habitantes dos Estados Unidos formavam a classe média.
Não foi culpa dele. Essa conceituação continua, até hoje, a confundir.
E, quando é usada por governos, serve para dourar a realidade.
Por não haver uma definição indiscutível desse grupo, governantes
tendem a adotar ou a criar as que melhor se adaptem a sua conveniência.
Classificar vastos contingentes da população como de “classe média”, em
vez de “pobres”, faz qualquer governo parecer mais eficaz. A prática
leva a contradições evidentes. No Brasil, tratar toda a classe C como
classe média significa afirmar também que são de classe média 65% dos
moradores de favelas no país. Na China e na índia, o inegável
enriquecimento, por vezes, nubla os fatos: a população é,
majoritariamente, pobre. Há várias formas objetivas de identificar a
classe média, e elas contam diferentes histórias sobre a real melhora do
Brasil e do mundo.
Uma dessas formas é descobrir onde estão as famílias com poder
considerável para comprar bens e serviços, sob o ponto de vista de
vendedores de qualquer lugar do planeta. O critério pode parecer
injustamente rigoroso com nações muito pequenas ou pobres. Não é o caso
do Brasil, um país extremamente desigual, mas com renda per capita de
média para alta e com preços e salários elevados, diante da média
mundial. Com esse enfoque, a consultoria Ernst & Young (EY) chegou a
uma definição própria, a partir de estudos iniciados em 2010 pela
Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Num
relatório recente, a EY denomina como pertencentes à “classe média
global” os indivíduos com rendimento diário entre US$ 10 e US$ 100, uma
renda mensal equivalente, agora, à faixa entre R$ 660 e R$ 6.600. O
governo brasileiro considera de classe média os cidadãos com renda entre
R$ 291 e R$ 1.019. Pelo critério do governo, a classe média é maioria
no Brasil: 53% dos habitantes. Pelo critério da EY, a classe média
encolhe para 41%, e os pobres são a maior parte da população.
Embora possa parecer renda de rico para os milhões de brasileiros
pobres, a faixa proposta pela EY ainda inclui famílias com ganhos
módicos. É um grupo próspero o bastante para consumir eletrodomésticos,
carros, lazer, educação e serviços de saúde, de forma semelhante em
qualquer lugar do mundo, esteja na América Latina, na África ou na
América do Norte. O critério da EY é tão atacável quanto qualquer outro.
Tem a seu favor o objetivo de aplicação prática: presente em 140
países, a EY tem de orientar seus clientes, interessados unicamente em
vender. No mundo, ainda mais que no Brasil, o critério rigoroso faria um
estrago terrível nos discursos de governantes. Se o adotarmos, em vez
do critério mais frouxo do Banco Mundial, a fatia da população
classificada como classe média cai, globalmente, de 48% para 30% da
humanidade. Na China, a queda é de 62% para 11%. Para o Banco Mundial,
pertence à classe média quem tem rendimento diário entre US$ 2 e US$ 13
(o equivalente a uma renda mensal entre R$ 132 e R$ 858). No Brasil, a
definição foi dada em 2012 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos
(SAE), ligada à Presidência da República.
Esse encolhimento estatístico em nada minimiza o impressionante
movimento de ascensão social ocorrido nas últimas décadas, no Brasil e
no mundo. Por aqui, as classes D (dos indiscutivelmente pobres) e E (dos
miseráveis) diminuíram, à medida que as famílias enriqueceram. A classe
C ganhou 35 milhões de integrantes numa década e concentra, hoje, a
maioria dos empreendedores e consumidores. Esse grupo passou a ver
possibilidades reais de melhorar de vida. Obrigou empresas e governos a
trabalhar com escalas maiores de produção e infraestrutura. “Para os
países que passam por transformações assim, o impacto é brutal. Aumenta o
consumo de produtos industrializados, a exigência por serviços, como
educação e transporte”, diz André Ferreira, sócio líder de mercados
Estratégicos da EY. Mesmo pelo critério exigente dos consultores, o
movimento de ascensão nos países emergentes continua perceptível. Hoje,
60% da classe média global vive na Europa e na América do Norte. Em
2030, esses 60% deverão estar na Ásia.
Mesmo se nos ativermos apenas aos critérios econômicos, é possível
construir conceitos mais sólidos que uma faixa de renda. Em 2011, os
economistas Luis Lopez-Calva e Eduardo Ortiz-Juarez, do Banco Mundial,
mostraram quão frágil era a classe média de México, Chile e Peru, três
países emergentes que também exibem resultados de enriquecimento
impressionante na última década. Eles dividiram a classe média oficial
entre domicílios vulneráveis e não vulneráveis a cair na pobreza. Nos
três países, tanto nas cidades como no campo, os domicílios vulneráveis
superavam os não vulneráveis. No Brasil, o governo leva em consideração
apenas a renda corrente, de que o indivíduo dispõe no mês. “Ao
considerar apenas a renda corrente, o governo deixa o critério
extremamente pobre”, afirma o professor José Mazzon, da Faculdade de
Economia e Administração da USP. “A mudança de comportamento no consumo
ocorreu, em parte, por causa da expansão do crédito. A população se
endividou.” Em 2012, as dívidas comprometeram, em média, 42% da renda
das famílias brasileiras. Na classe C, essa fatia chegou a 47%. A
própria SAE reconhece as limitações do critério exclusivamente por
renda, que chama de “unidimensional”. No relatório de 2012, em que
conceituou a classe média brasileira, o governo explicita sua opção pela
simplicidade.
Tal simplicidade tem seu valor, além de rechear facilmente os
discursos com números impressionantes. Ela permite que o governo defina
políticas públicas mais fáceis de compreender. Com a simplicidade,
porém, vem o perigo de acomodação e percepção distorcida da realidade.
Um país de classe média certamente tem menos de que reclamar e menos a
exigir. Não sem motivo, o Partido Trabalhista britânico e o Partido
Democrata americano debatem o uso indiscriminado, por seus filiados, da
expressão “classe média” para designar a maior parte da população, de
que se apresentam como defensores. As alas mais à esquerda dessas
agremiações temem perder a identidade com os mais pobres. No Reino
Unido, os trabalhistas mais à esquerda preferem usar “classe
trabalhadora”, quando se referem a todos que dependem de salário. No
Brasil, o sociólogo Jessé de Souza, da Universidade Federal de Juiz de
Fora, chama a classe C de “batalhadora”, em vez de classe média.
Na origem, “média” é um conceito puramente matemático. Todos os
estudiosos do tema, porém, reconhecem que a expressão “classe média”
ganhou contornos mais sofisticados, que podem incluir visão de mundo,
educação e aspirações. A sociedade ganharia na qualidade do debate
público se considerasse os fatores que permitem ao cidadão manter seu
padrão de vida, mesmo em momentos mais difíceis. Um desses fatores é o
grau de instrução – com mais anos de educação, aumentam as chances de o
indivíduo buscar outro emprego ou abrir um negócio próprio. Tal
segurança econômica deveria ser um traço característico e desejável em
qualquer grupo denominado classe média.
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